Eu tava olhando a janela. Porra! Nem todas as janelas que eu queria olhar estavam por aqui. Mas tudo bem, mesmo que eu fosse escolher algumas janelas pra olhar, eu não escolheria todas. Deixaria algumas ocupadas por personalidades randomizadas desconhecidas. Eu gosto de novidade. Eu gosto de provar, saber se gosto - se desgosto. Se eu escolhesse todas as janelas, tudo teria o mesmo gosto (mais do mesmo). E mesmo as janelas que eu escolhesse, seriam aquelas das pessoas que eu sei que me surpreenderão. Nessa minha imaginação, as pessoas são capazes de nos surpreender, mesmo após anos de convivência. Não, não nessa minha imaginação, nessa minha realidade.
Eu gosto de escrever com alguma maquiagem - mesmo que eu não me amarre muito em usar maquiagem. Mesmo precisando andar o máximo de tempo possível descalço, minhas letras caminham de salto alto. Que bobeira! Quando me fizeram usar maquiagem, e adornos, e salto alto, e palavras doces, eu orava e me torturava todos os dias pra me tolerar. Não passava de uma boneca de ferro - eu? aquela realidade? E ainda sinto medo de pessoas que tentem me fazer parecer algo que não sou.
Por vezes sou tão grossa e tão dura, tão impessoal e amarga, tão correta e cobradora, tão hipócrita, só pra que saibam que não quero que me moldem. Certa vez uma amiga disse, depois que terminei um relacionamento duradouro, que nunca achou que eu fosse ficar por tanto tempo assim com alguém. Eu não sei porque as mulheres dessa família - e as amigas das mulheres dessa família - fazem questão dessa vocação pela caridade.
Não, eu não me considero incapaz de relacionamentos duradouros. Até que vou bem neles, muito apaixonada. Pouquíssimas coisas me fazem feliz. E um preceptor que eu considero muito sábio dizia que a gente tem mesmo que ser feliz com pouco. Mas essa amiga me disse isso e me marcou. Acho que é por causa do meu duplo aquário. Outra vez um sujeito foi brincar de olhar até cansar comigo (olhar nos olhos, bem fundo, sem piscar). Ele se achava forte e depois de um tempo desistiu. Por fim disse: "você é forte". E eu acho que ele me subestimou, mas não é culpa dele. Eu tenho essa coisa de me sentir bem sendo subestimada. Sendo subestimada e depois surpreendendo. Ele achava que aquarianos fossem da água, mas esse povo pertence ao ar.
Não que eu não me identifique com as águas, sempre caminhando, água ou caminhão, carreta, trator, sempre em frente, buscando meios, brechas, frestas. De preferência as negligenciadas, de preferência aquelas pelas quais vou passar sem que percebam, e chegar - não atrás, não na frente, mas chegar. Outro dia eu fui comprar água e você chegou na frente, e brindamos a não sei o que. Não que houvessem poucos motivos pra brindar, na verdade, acho que haviam muitos, daí fiquei sem saber qual era o sentido daquilo. Não, eu não tava procurando sentido. Sim, eu fiquei feliz com a delicadeza do gesto. Também não sei se era essa a sua intenção.
Quando meus amigos descobriram que meu personagem preferido do X-Men era o Noturno, eles fizeram chacota de mim. Tudo bem, eu continuei gostando dele mesmo assim. Mas quando meu pai chegou no meio da conversa e descobriu quem era o personagem, o que fazia, meu pai disse que eu gosto mesmo de fugir. Meu pai é meio assim, tem uma sensibilidade, sabe das coisas - não sabe de muitas outras - e nosso relacionamento nem é tão bom. Melhorou muito depois que eu descobri que, realmente, essa coisa de maquiagem e salto alto é desnecessária.
Engraçado que quando eu descobri que adorno demais era bobagem, eu adquiri um certo gosto por eles. Essa coisa de ser diferente, essa rebeldia que vai se incorporando ao nosso olhar com o tempo (não sei onde foi que eu li isso, mas era bonito e ficou marcado em mim). A gente amadurece, a gente aprende a ser camaleão, a gente aprende a brincar com a nossa vaidade. Tem dias que eu me quero enfeitada, tem dias que eu me quero pelada, tem dias que eu me quero vazia - e geralmente nesses dias eu tô cheia.
Cacete! Eu sinto falta da religiosidade. Mas tá difícil porque eu tenho medo da hipocrisia que cada templo guarda. Tenho preferido os guetos religiosos porque lá se escondem os vulneráveis. Ninguém vai lá pra se exibir, com a melhor roupa, com a melhor auréola e asa, com a melhor aura. Vão os desesperados, os sem bom gosto e os sem bom-senso. Taí, esse é o meu Deus. Eu sinto falta dele nesse mundo católico-protestante em que ir à igreja se transformou numa droga que instila poder nas veias dos que adoram.
Já escrevi demais, deixei rolar. Por favor, não venham com censuras. Essa autobiografia foi devidamente autorizada.